sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Duas xícaras

Terça à tarde. Chove há duas semanas e eu não consigo pegar minha pantufa. “Enquanto você não emagrecer não vai conseguir chegar até lá, minha filha, já te disse?”. Ainda não contei a ele sobre meu plano, por isso tento me agachar até o máximo que consigo para pegar o pé esquerdo da pantufa que insiste em se enfiar em uma das gretas do emaranhado de papéis, sapatos e cabides debaixo da cama. Acabo por desistir e vou em busca do chinelo azul-escuro do meu irmão que é um desastre de grande e tem um das solas descoladas.

Chove há duas semanas e hoje é feriado. Fui ao supermercado e na volta vesti novamente meu roupão – o mesmo que visto há cinco dias. Quando passei pelo espelho da copa, me pareceu um pouco encardido, mas talvez seja só meu cabelo que precise de uma hidratação e meus óculos de um banho do líquido azul daquela loja da Espírito Santo que uma mulher me fez comprar cinco vidros por “vinte real”. Que fosse trinta, eu deveria ter comprado seis. Dei uma baforada e limpei com uma das mangas do roupão – ficou embaçado, seda não é tecido pra limpar óculos. Mesmo que não estivesse sujo, fiquei com nojo do roupão, embaçar meus óculos quando o que mais preciso é ir ao oftalmologista? Continuei enxergando embaçado, mas troquei de roupão e agora um cheiro novo impregnava o quarto, um perfume doce de roupa limpa. Cheirei o roupão e dele só veio um odor agudo de naftalina – é minha irmã trocando os lençóis recém apanhados do varal. “Por que você ta usando isso? Cadê o seu?”. “Sujou, eu acho.” Nina bufou e saiu andando. Eu entenderia o porquê da desaprovação se já não tivesse se passado tanto tempo desde que o roupão fora guardado. Hoje o dia estava assim: era como se ela estivesse em todos os lugares, desde que saí cedo pra comprar pão e vi em cima da mesa a xícara que eu fiz pra ela, “feliz dia da melhor amiga” e que não a pertencia, que, aliás, nunca a pertencera. Recalquei a lembrança de que em dias assim ele ficava mais melancólico, há cinco anos não fala dela, mas sei que se lembra diariamente e o fato de a xícara estar fora do armário me fez dar a volta na casa e ir até à janela de seu quarto. Ele assistia a algum filme do Buster Keaton, oportuno para um dia de poucas palavras, esteve mudo também durante todo o tempo em que fiquei observando, sempre com a xícara na mão, sorvendo o conteúdo como se não tivesse gosto (ou como se quisesse que não houvesse ou talvez isso realmente não fizesse diferença), subindo e descendo lentamente, segurando com as duas mãos já vermelhas que não vacilavam diante do calor da bebida. Enquanto Keaton fazia uma fuga de bicicleta, ele leu os dizeres da xícara inúmeras vezes, estacionando os dedos polegares sobre uma carinha feliz que eu só lembrava de ter feito para ocupar espaço, eu nem gostava de fazer esses presentinhos, mas a professora dizia: “enquanto houver espaço vocês devem soltar a imaginação, crianças”.

Quando voltei para dentro de casa, fui direto ao meu armário, peguei uma caixinha roxa que fica ao lado do álbum vermelho de casamento (que herdei porque ele precisava ser salvo) e tirei de lá o que eu sempre pensei ser inútil, afinal, minha casa sempre tivera muitos outros copos. Fui até a cozinha, fiz um pouco do capuccino caseiro, de receita dela, que era do que ele provavelmente se servia. Andei até a porta de seu quarto lentamente, não sei quanto tempo levei. Fiquei parada mais algum tempo na entrada até que ele se incomodou e pediu que eu me sentasse a seu lado. Quando arrisquei o primeiro gole, fui obrigada a parar na metade: ele me olhava espantado como se desconhecesse a origem daquela xícara. “Que foi?”. “Nada, querida, só queria saber se estava frio, dá aqui que eu sopro”. Entreguei-a a ele e o que se prosseguiu foi o mesmo ritual de antes, com a exceção de que agora passava outro filme do Keaton e que ele não bebera do meu capuccino.

“Pai, eu não vou mais à endocrinologista, tá? Eu resolvi que quero ficar assim, a Nina tem só doze anos, pode pegar minha pantufa caso eu precise.” Não disse nada, tinha a mesma expressão impassível de Buster, o que me apavorou por um milésimo de segundo. Entregou-me a xícara enquanto lia o que estava escrito nela: “o meu pai é um bobão”. E então sorriu. Ele também sabia que seu preferido era Carlitos.

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