sábado, 15 de janeiro de 2011

"Maria"

A primeira vez que ele me abraçou foi numa tarde apertada como a de hoje. O dia inteiro fora sufocante e nada aliviava a sensação de morte iminente perceptível na expressão de cada um naquela repartição. Vi uma das colegas correr para o banheiro com uma bolsinha na mão e dei graças a Deus por meus dias estarem atrasados, com esse tempo tudo piora e todo ser que é mulher beira o suicídio.
Fiquei incomodada por ela e saí para comprar uma água gelada e, se eu tivesse sorte com os coreanos da rua esquerda, um ventilador de mão. Comprei a água e saí depois de mandar o caixa da padaria enfiar a bala de troco onde ele quisesse. Ele veio de lado, provavelmente, me puxou pela mão esquerda com a qual eu segurava a água que bebia.
- Filho da puta, você tá ficando doido?
-Shhh, cala essa boca, mulher.
Foi quando ele me esmagou com seus enormes dedos magros tentando, ao mesmo tempo em que me fazia ficar calada, enxugar minha blusa que havia ficado ensopada com a brusca interrupção. Me arrastou para um canto e lá ficamos durante alguns minutos abraçados como um casal de primeira semana de namoro aos treze anos. Tenho certeza de que aquele suor todo não era meu, ele também estava nervoso, não sabia o que fazer depois, tão pouco o que fazer comigo àquela hora.
- Escuta só, eu não quero que você pense errado.
- Não estou.
- Está.
- Não, não estou.
- O que você quer?
- Comprar um ventilador de mão agora que eu já comprei a água. Ok, um ventilador e outra água.
- E você só quer isso?
- Só.
O homem me olhou intrigado por mais de um minuto contado em relógio mental tentando achar o que procurava ou formulando alguma estratégia para resolver seus problemas mais recentes.
- Escuta, moço, eu não vou fazer nada, só tenho que ir ali e comprar meu ventilador, senão é bem capaz que eu morra de calor antes que o senhor consiga imaginar alguma outra forma de fazê-lo.
Ele arregalou os olhos e me apertou o pulso, pensei que eu fosse desmaiar ou morrer mesmo. Senti medo e tenho certeza de que ele também.
- Olha, eu vou lá comprar e volto.
- Você não vai a lugar nenhum, mulher.
- O que o senhor quer, moço? Porque eu poderia passar o dia inteiro aqui se o mesmo me pertencesse. Agora eu preciso de verdade comprar isso pra que seja possível viver onde eu trabalho, se o senhor precisa de alguma coisa, fale logo porque nada na vida é barato, nem meu tempo.
Sem dizer nada o homem puxou sem muita força o meu braço direito, sacudiu para um lado e para o outro, chacoalhando-o na tentativa de afrouxar a abotoadura do relógio. Pegou-o e também o anel.
- “Maria”. Você tem um anel com seu nome?
- Não é meu nome.
- Entendo.
E ficou lá observando-o enquanto eu saía sem nenhuma pressa.
Voltei para o prédio e a colega já reclamava de cólicas, como sempre. “Vadia hipocondríaca. Deus deveria dar a esse tipo de mulher a opção de uma vida sem trepar em troca de não menstruarem nunca mais. Aí eu queria ver essas vagabundas reclamando”. Me dei conta, depois de duas horas, que o ventilador ficara lá com o coreano da rua esquerda e que o calor também passara um pouco. Não voltei pra comprar.
Hoje, na volta pra casa, entrei no ônibus sem muita paciência e xingando. Todos sabemos o que acontece com nervosos em ônibus. Fomos eu e os olhares dos demais lá pra trás, pra perto do penúltimo banco, do lado oposto da porta. Fiquei um tempo em pé olhando para a janela com a esperança de que dali a cinco minutos não haveria mais ninguém a me fuzilar. Foi quando uma moça se levantou e eu sentei em seu lugar, ao que todos olharam pra mim com um ar imenso de reprovação, achando um absurdo uma mulher barraqueira daquelas ir sentada e, ainda pior, uma mulher barraqueira que praticamente tinha acabado de entrar no ônibus. “Fodam-se todos vocês, seus desgraçados, quero que cada um de vocês morra a garfadas”. O devaneio foi interrompido quando percebi um rosto conhecido ao meu lado. Sorri. Ele me sorriu de volta.
Talvez ele estivesse naquele primeiro encontro somente desesperado. Talvez ele tivesse entendido que eu devesse não ter o que ele me levou e, certamente não estava errado. Ele me abraçou. Não pensei muito, fiquei lá. Assim como eu, como Maria também, ele precisa voltar pra casa.