sexta-feira, 10 de julho de 2009

Dois escudos


Apólogo dos dois escudos

(José Júlio da Silva Ramos)

Conhecem o apólogo do escudo de ouro e de prata?
Eu lho conto.
No tempo da cavalaria andante, dois cavaleiros armados de ponto em branco (=com cuidado, com esmero, completamente), tendo vindo de partes opostas, encontraram-se numa encruzilhada em cujo vértice se via erecta uma estátua da Vitória, a qual empunhava numa das mãos uma lança, enquanto a outra segurava um escudo. Como tivessem estacado, cada um de seu lado, exclamaram ao mesmo tempo:
- Que rico escudo de ouro!
- Que rico escudo de prata!
- Como de prata? Não vê que é de ouro?
- Como de ouro? Não vê que é de prata?
- O cavaleiro é cego.
- O cavaleiro é que não tem olhos.
Palavra puxa palavra, ei-los que arremetem um contra o outro, em combate singular, até caírem gravemente feridos.
Nisto passa um dervis, que depois de os pensar com toda a caridade, inquire deles o motivo da contenda.
- É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de ouro.
- É que o cavaleiro afirma que aquele escudo é de prata.
- Pois, meus irmãos, observou o daroês, ambos tendes razão e nenhum a tendes. Todo esse sangue se teria poupado, se cada um de vós se tivesse dado ao incômodo de passar um momento ao lado oposto. De ora em diante nunca mais entreis em pendência sem haverdes considerado todas as faces da questão.


Já entrei em muitas discussões em mesa de boteco. Algumas tomaram horas  chegando ao ponto de em uma das vezes serem levantadas milhares de hipóteses sobre o que a professora queria dizer e o que de fato ela disse em uma das aulas. A partir disso um amigo criou caso até chegar à questão  sobre o que cada um quer escutar. Ele dizia ter mais propriedade pra falar sobre o tema porque, como lhe interessava, automaticamente sua audição foi aguçada quando a professora citou o determinado assunto e que ele tinha escutado o que ela realmente disse, algo, segundo ele, não condizente com a verdade. O caso é que pra ele, nós - eu e mais uns seis amigos - não tínhamos prestado tanta atenção e por isso teríamos escutado o que se encaixava em algo que se assemelhasse com o que seria mais provável, embora, insistiu ele, não ter sido exatamente aquilo que ela tinha dito. Ok. A discussão acabou feia e ninguém arredou o pé.


Hoje, voltei pra casa lendo um livro sobre elementos de análise do discurso do Fiorin, que já na introdução lançou esse “Apólogo dos dois escudos” e imediatamente me lembrei da discussão aquele dia no bar.


Fiorin, ao analisar o sentido duplo que o escudo toma no texto, disserta sobre saberes explicitando que o saber de cada um sobre o objeto é diferente porque é condicionado pelo ponto de vista, cada um dos sujeitos atribui a seu conhecimento a marca da certeza e confere ao outro a qualificação de equívoco, ou seja, confere ao do outro como “não-saber” e isso é o que acaba levando à confrontação, em que cada um pretende impor ao outro seu ponto de vista. O autor aponta a necessidade de colocar-se em mais de uma perspectiva na análise de uma questão para que se chegue à conciliação. Ao considerarmos uma questão apenas por um lado, estamos impondo a ela uma visão parcial.


O negócio é que a maior baboseira universal é se basear em conceito de verdade pra justificar alguma coisa. É óbvio que não existe certo e errado. Não há verdade, mesmo que você tente impor isso a alguém e por mais que ele aceite, não quer dizer que você conseguiu chegar ao nível mais profundo de um certo tema. Existe, é claro (e felizmente), a verossimilhança, aquilo que é o mais provável que tenha acontecido, mas nunca uma verdade absoluta e incontestável.

É evidente que não se pode rejeitar as várias interpretações que um objeto pode adquirir porque querendo ou não ele ganhará sentidos novos passando por várias épocas, em diferentes contextos. Portanto, é imprescindível que se respeite o valor inegável e os significados imensuráveis que uma palavra pode ter. Nem sempre haverá um dervis que nos aponte o outro lado do escudo.

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